terça-feira, maio 19, 2009
Tenho uma, cem, milhares de razões de ser como sou. Todas as que conheço e todas as que não cheguei a conhecer.O estalo que não recebi, a festa a que não fui, a professora injusta, o namorado que me traiu. Tenho talvez avós há muito esquecidas que passaram as suas vidas perdidas nas mesmas dúvidas existenciais, tias neuróticas, ou, quem sabe, um trauma à nascença, uma enfermeira de mãos geladas e olhar indiferente e duro.
Cresci a repisar sonhos e ilusões. Com velocidade ciclónica tratei leprosos em África, percorri a muralha da China, mergulhei na transparência das águas gregas, tive amantes tenebrosos e amigos mais doces que o mel. Com verdadeira confiança vi--me escritora de renome, herína de uma qualquer resistência, senhora fina rodeada de filhos e solitária boémia passando frio em sótãos parisienses. Imaginei-me poeta, quis-me grande, nome repetido amorosamente, morta prematuramente, talvez...
A dimensão do que sonhei era imensa, infinda, nada era demasiado longínquo, demasiado alto ou demasiado profundo para mim.
A certeza da enormidade do meu destino bloqueou-me.
Todos tivemos pesados traumas e grandes futuros. Todos temos as nossas histórias pessoais e intranmissíveis. Quase todos sobrevivemos a elas. Melhor ou pior.
Crescemos, escolhemos, esticámos, moldámo-nos. Ficámos gente pequenina e gente grande, magros ou gordos, divertidos ou melancólicos. Com o gosto da distância ou a necessidade de um cantinho. Necessitados de aventura ou presos a tradições e convenções. Todos iguais e todos diferentes, como se uma criança atrevida tivesse, a grandes rabiscos, reescrito, a nossa figura sobre o milde inicial. Todos passíveis de sermos bons, feitos maus por alguma partida da vida. Morta em nós a arte e a busca da beleza. Exterminada a inocência, pervertida a solidariedade.
A culpa é da vida.
A culpa é da tia neurótica, da enfermeira empedernida, do namorado traidor. A culpa é do pai indiferente, da mãe que não deu de mamar, da professora injusta, do patrão prepotente. A culpa é da vida.
Perdida em ruelas de justificações, becos de culpas e desculpas, auto-estradas de autocomposição, presa da minha história, incapaz de modificá-la, de começá-la de novo, apercebo-me demasiado tarde (ou talvez não), que a tia, a ennfermeira, o namorado, o pai ou a professora somos nós, condenados ao inevitável entrelaçamento com a vida alheia.
A vida somos nós.
Que nos fazemos ou desfazemos a nosso bel-prazer, ocupados que estamos em procurar culpados.
Que nos gastamos e desgastamos em busca de justificações.
Que assumimos a nossa culpa como uma doença sem cura e a nossa inocência como uma fraqueza imperdoável.
Que nos afundamos em abismos sem fundo, para não ferirmos os olhos com a luz, demasiado reveladora.
Que o fazemos sem saber, sem culpas nem responsabilidades na prisão que nós próprios construímos. Inocentes e puros como à nascença. Ignorantes do nosso destino e orgulhosos do nosso desatino.
Será demasiada a responsabilidade, para assim a rejeitarmos?
Será essa a angústia da vida que nos faz acordar de manhã com o peso de todo o mundo às costas?
Será esse o nosso medo de viver?

Maria Faria Blanc

4 comments:

Li disse...

Pois...a culpa é sempre nossa mas nós responsabilizamos sempre alguém ou alguma coisa de fora...será medo? provavelmente...

bjs

fj disse...

A CULPA É 100pre DOS OUTROS!


uma boa noite!

Beijinhos

Anónimo disse...

Grandes verdades que estão neste texto!
Já Freud explicava que a mente encontra sempre desculpas para tudo, principalmente nos outros...

T. disse...

A culpa não é sempre nossa.Não é sempre dos outros. É complicado encontrar culpados, no meio de tanta barafunda, com tanta gente aos encontrões uns aos outros.
...

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